
É TUDO VDD
Venho do meio cinematográfico, então começo dizendo que assistir a esses filmes como filmes, que é o que também são, foi muito valioso pra mim, uma libertação. Lembro de uma professora e cineasta argentina naturalizada mexicana, Paula Markovitch, especialmente instigadora, dos tempos em que eu estudava cinema em Cuba. Discutíamos muito a noção de purismo, e sobre o que é verdadeiramente poético, cinematográfico, televisivo. A maneira que concluímos, claro, induzidos por ela, é de que de fato não existe nada que seja específico de uma linguagem. A ideia do puramente cinematográfico, por exemplo, nos primórdios do cinema, excluía o campo sonoro de sua experiência, como se o cinema "de verdade" devesse contar uma história somente pela imagem - e essa ideia perdura ainda entre alguns medíocres, embora, hoje, o som seja parte primordial da experiência. A conclusão que nos soava em aula, menos pedante e mais democrática, é de que é cinema se estiver programado numa sala de cinema, é televisão se passa na TV - ou seja, o mesmo filme que era cinema no cinema, se torna TV na TV - é um poema, se está publicado num livro de poesia. Claro, essa conclusão não impede que haja crítica ou que não se possa analisar os jogos linguísticos em que opera cada obra em si para se chegar a uma conclusão sobre os valores dessa obra; mas essa ideia deveria pelo menos conseguir, se fosse mais disseminada, que boa parte da crítica (em geral branca, hétero e cis, ou seja, uma parcela bem específica e pequena da população) não esbravejasse grandes aforismo como "isso não é cinema", "isso é cinema de verdade!", ao invés de de fato se debruçar sobre uma obra e analisá-la.
Com o advento tecnológico e viral - no caso, da Covid - esse jogo fica mais complexo. Cinema na internet é internet? Afinal, o que é específico da internet se não não ter nenhuma especificidade e poder ser tudo? Há um boom de festivais de cinema online, já que a presença física numa sala de cinema não é mais possível. Filmes tem suas estreias mundiais, com seus diretores sentados nos sofás de suas casas, dando entrevistas como se estivessem num tapete vermelho. Isso gera muitas questões. Video arte na internet é meme? Cinema na internet é viral? Figurinha na internet é colagem, é artes plásticas? Vivemos um hibridismo sem igual, e a ideia de pureza parece tão distante quanto a de Adão e Eva no paraíso.
Ver como estes filmes do programa "é tudo vdd" se apropriam da linguagem pandêmica, da estética do celular, sem nenhum pudor, é muito bonito. Um dos curtas que dirigi, "Mãos que curam" (2015), foi todo feito em celular. Sem embargo, foi o meu filme menos exibido - apenas um festival o selecionou. Uma programadora de um festival uma vez me perguntou "gostei, mas porque com celular?". Ora, porque era urgente, porque eu não tinha outra câmera, porque era uma proposta intimista, porque sim. Outra vez, após outro filme meu "Os cuidados..."(2016) receber o prêmio de melhor curta-metragem em um festival, uma das juradas, portuguesa, me parabenizou pelo filme e me desejou que na próxima vez eu conseguisse uma câmera melhor (o filme foi feito com uma handycam ). "Seu filme seria de fato muito lindo se tivesse uma imagem perfeita". Ela, desde sua visão de cinema "profissional", não conseguia conceber que aquela estética pudesse ser pensada nem como escolha, nem como apropriação de uma possível precariedade de meios. Conto esses casos pessoais, porque me parece que o "celular" nunca foi de fato apropriado como possível câmera cinematográfica - no sentido de uma câmera na mão, uma ideia na cabeça - como o vídeo acabou sendo assimilado, ou como o digital (o digital, porém, ultra mega power 8K). O digital impreciso do celular, menos definido, parecia estar fadado ao especificamente relativo à internet (canais de youtube, virais de origem absolutamente caseira e espontânea). Até hoje, até a pandemia.
Os artistas, encerrados em suas casas, começaram a se dar conta de que, melhores ou piores, seus celulares tem uma qualidade bem superior do que há 10 anos. E eu ousaria dizer que qualquer imprecisão específica desse suporte, não é mais imprecisa do que os primeiros experimentos em película ou em vídeo. E, falando especificamente de festivais de cinema, acho que não há volta atrás, e que essa estética será inevitavelmente incorporada. E é nesse sentido que quis dizer "libertador" na primeira linha deste texto. É libertador, ver como em "O Céu da Pandemia", de Marina Kerber, a sensação de uma quarentena prolongada se torna um
sentimento agridoce, aterrador e por vezes engraçado, e como o cotidiano se torna um alienígena quando confrontado sem nenhuma possibilidade de saída. O horror de um arroz queimado, a nostalgia de um aniversário feito via ZOOM, e o abismar-se com a vista de sua própria janela, onde, quem sabe, um disco voador colorido possa passar voando.
"Ketchup na Massa #1piloto" de Filipe Rossato, uma colagem, um filme, uma esquete de teatro, um "Porta dos fundos" queer e nonsense? A beleza desse filme se dá justamente na completa superficialidade do conflito de seus protagonistas, decidindo se ketchup no macarrão é bom ou não. Em tempos de tanta urgência, uma delas é o ketchup. #amo
Em "Quase um horror", de Claudia Campolina, a concisão é o lema. Claudia, também atriz do filme, só precisa do próprio corpo, da câmera e de maconha (será mesmo?) para explorar gêneros como o horror e a comédia, numa badtrip uó e hilária - trabalhando clichês do gênero, como a trilha sonora climática, enquadramentos e expressões faciais.
Em "Jornada da Vilã" e "Crônicas do Doutor Sanchez", ambos do coletivo Cinema fora de cena, o deboche com o cinema tradicional é pungente e a capacidade imaginativa é alta. Tudo parece ser possível dentro deste universo. Ou quase possível, uma vez que o cinema narrativo é assumidamente uma moldura para estes filmes.
Já "HandJob" se ampara em um trecho de um conto de Caio Fernando Abreu, ilustrado por mãos atrizes - novamente, a concisão e o corpo. O que está em jogo é a fricção, não só literalmente das mãos, mas entre a sensualidade potencialmente explícita da narração de uma masturbação, em inglês handjob, e o acting aparentemente inocente das mãos que performam. Já "A vida em trientena" de Fernanda Pujol, utiliza a estética vertical de stories para construir um poema concreto e bem-humorado em 5 versos, que convidam à múltiplas leituras.
Para terminar, quero pontuar que o título da sessão "é tudo vdd" soa extremamente irônico diante deste mundo de pós-verdades em que vivemos, e mesmo diante de filmes tão díspares e imaginativos. Ainda mais irônico, pois é o mesmo nome de um dos mais tradicionais e conservadores - pelo menos no que diz respeito ao conceito de documental - festivais de documentário do Brasil. Mas de fato, a imaginação existe concretamente; é, pois uma verdade. Os documentos que acessamos para dar formas ao documentários podem e devem ser imateriais: sonhos, desejos, fetiches, anseios, memórias. Portanto, é tudo verdade: é tudo cinema, é tudo artes plásticas, é tudo poesia, é tudo viral.
Gustavo Vinagre*
*Gustavo Vinagre estudou Letras na USP e cinema na EICTV, em Cuba. Dirigiu os longas-metragens "Vil, má" (Berlinale 2020), "A rosa azul de Novalis"(Berlinale 2019) e "Lembro mais dos corvos" (Tiradentes, Cinema du réel 2018). Também dirigiu diversos curtas-metragens, entre eles "Filme para poeta cego", "Nova Dubai", "La llamada", "Os cuidados que se tem com o cuidado que os outros devem ter consigo mesmos".